João Saldanha não costumava levar desaforo para casa. Chamado até de João Sem Medo, o comunista assumido participou de guerrilhas e greves. Em um dos atos mais ensandecidos, aceitou o desafio de treinar a seleção brasileira um ano antes da Copa do Mundo de 1970, em meio a uma ferrenha ditadura militar. Política à parte, o comentarista esportivo era capaz de sacar uma arma e alvejar o goleiro do seu time de coração, inclusive indicado por ele para o clube. Foi assim que deixou marcada uma das histórias mais incríveis do futebol. Coube a Manga, assustado, pular um muro de quase três metros, segundo relatam pessoas que estiveram no Mourisco, sede náutica do Botafogo, no dia 19 de dezembro de 1967. A data era comemorativa. Os jogadores alvinegros festejavam a conquista de mais um título do Campeonato Carioca quando o som da bala era tudo que se fazia presente no local do Jantar da Vitória (como era tratado o evento).
O apertar no gatilho persegue Haílton Corrêa de Arruda 45 anos depois. Nesta sexta-feira, Dia do Goleiro, Manga completa seu 76º aniversário. E, por mais que se sinta incomodado com o assunto, justificou-se, rebatendo as insinuações de que estaria vendido naquele jogo contra o Bangu, apesar da vitória por 2 a 1 ao apito final.
- Isso nunca. Ele (João Saldanha) desconfiou. Disse isso na televisão. Disse isso no programa dele. Aí as coisas terminaram muito difíceis para ele e para mim - defendeu-se Manga, que hoje mora no Equador e mistura o português com o espanhol ao conversar.
Manga no Botafogo: quase baleado por João Saldanha
Voltando
a fita para dois dias antes do episódio do tiro. Botafogo e Bangu jogavam no
Maracanã. A atuação do goleiro deixava dúvidas no comentarista João Saldanha,
falecido em 1990, aos 73 anos, vítima de um enfisema pulmonar. Existia no ar
uma desconfiança de um suposto suborno oferecido pelo então presidente do
Bangu, o bicheiro Castor de Andrade - também já falecido. Na transmissão da TV
em que trabalhava, Saldanha questionou algumas saídas atabalhoadas do arqueiro
em busca da bola. E mandava a pulga para trás da orelha de quem assistia à
vitória do Botafogo.
- Estava chovendo bastante. Toda bola era difícil. Como o
João era o comentarista, estava dizendo que eu soltava muita bola e desconfiou.
Eu, como profissional, fiz minha apresentação, e ganhamos o jogo - relatou
Manga.
- Não sei se corromperam (o Manga) ou não em dinheiro, mas com ameaça de morte foi de uma forma visível. Ele estava aterrorizado. Se estou lá (no Botafogo), não deixo ele jogar - contou Saldanha em uma entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, alguns anos depois.
- Estava chovendo bastante. Toda bola era difícil. Como o
João era o comentarista, estava dizendo que eu soltava muita bola e desconfiou.
Eu, como profissional, fiz minha apresentação, e ganhamos o jogo - relatou
Manga.
- Não sei se corromperam (o Manga) ou não em dinheiro, mas com ameaça de morte foi de uma forma visível. Ele estava aterrorizado. Se estou lá (no Botafogo), não deixo ele jogar - contou Saldanha em uma entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, alguns anos depois.
Mas foi outro personagem que
correu atrás do prejuízo após a partida. Castor de Andrade, munido de seus
seguranças, invadiu a televisão para tirar satisfação.
- O fundamental foi o
espancamento violento, como nunca vi, de um grupinho de torcedores que saíram
com as bandeiras no fim (do jogo). (Os seguranças) Cercaram e arrebentaram.
Espancadores da mais alta qualidade. Aí botei a boca no mundo. Invadiram a
televisão, armados, o Castor e mais uns quatro. Mas a polícia abafou - dizia
Saldanha.
Destemido, Saldanha não se intimidou. Com a
situação sob controle, ouviu de um dos seguranças da TV um conselho: guardar
uma arma para se defender em caso de retorno dos comparsas de Castor. Voltou
para casa. Acordou de manhã cedo na segunda-feira pós-decisão, às 7h. Recebeu a
visita de um jornalista que já tivera ajudado a tirar “de uma sujeira que ele
fez em São Paulo”. O tal jornalista estaria em uma reunião em que ficou
combinada a armação para João Saldanha aparecer na festa da comemoração, terça,
e ser surpreendido por dois seguranças que o agarrariam para Manga agredi-lo. A
cena toda seria registrada pelos veículos da imprensa, contava Saldanha.
Antes da festa no Mourisco, porém, a imprensa cobrava satisfação do
goleiro. O clima era de apreensão.
- Nos outros jornais, tinha um (jornalista) que
entrevistou o Manga e dizia: “Vai ficar assim, Manga?”. O Manga não dizia nem
sim, nem não. “Mas isso não pode ficar assim” (dizia o jornalista). Eles
incentivando e armando - relatou o comentarista ao programa "Roda
Viva".
Inicialmente, Saldanha não era afeito a
aparecer no local. Até que o sangue ferveu um pouco e as raízes de combatente
falaram mais alto.
- Eu estava pensando: se for lá, tenho que
matar um; se não for, vou ter que matar uns oito. Então é melhor eu ir. Agarrei
dois ferros, botei na cinta e fui para lá cedo.
Contou o próprio que o circo estava armado para
começar às 20h, logo após a "Voz do Brasil" (programa radiofônico que
vai ao ar durante a semana, de 19h às 20h). Ele chegou mais cedo, 19h. Havia crianças
com suas mães no pátio. Escondeu-se embaixo de um Volkswagen, longe da alça de
mira dos seguranças. Manga chegou às 19h30m acompanhado por dois companheiros
de clube. Transcorria tudo normal. Até João Sem Medo aparecer, como recorda o
ex-ponteiro Jairzinho, colega de Manga no Botafogo.
- Quando estava tudo transcorrendo na maior
normalidade, surge o Saldanha. Como se fosse um bandido entrando naquela casa,
como no faroeste. Estava um barulho terrível, todo mundo falando. Por
coincidência, eu estava no grupo que estava com Manga. Não sabíamos que o João
ia aparecer. As vozes foram diminuindo de volume, até que de repente o Manga
sentiu que paramos de falar e olhou para trás. Ele viu o Saldanha caminhando de
encontro a ele. Quando chegou mais ou menos a uns seis passos, o Saldanha sacou
um revólver que nunca vi tão grande. Falou para o Manga: “Se der mais um passo,
será um homem morto.” O Saldanha deu dois tiros para baixo e um para cima. Lá
havia um muro com quase três metros. Nunca vi alguém saltar tão alto. Nem o
campeão de salto triplo - relembrou Jairzinho.
- Vai sair sangue, mas é o teu, seu filho... Dei dois tiros, mas sem muita vontade nem de errar nem de acertar. A minha intenção era a seguinte: ele vai correr para onde? Vocês imaginavam onde estavam as câmeras e os seguranças. Aí eu dava um tiro na bunda. Mas ele correu para o outro lado, onde estavam as mulheres e as crianças. Eu não sou pistoleiro, não dei - contava Saldanha.
- Vai sair sangue, mas é o teu, seu filho... Dei dois tiros, mas sem muita vontade nem de errar nem de acertar. A minha intenção era a seguinte: ele vai correr para onde? Vocês imaginavam onde estavam as câmeras e os seguranças. Aí eu dava um tiro na bunda. Mas ele correu para o outro lado, onde estavam as mulheres e as crianças. Eu não sou pistoleiro, não dei - contava Saldanha.
Ele ainda disparou contra os aparelhos de TV
que registravam o momento. Apagou as imagens com o disparo, viu um câmera
largar tudo para salvar a vida. Foi capaz até de disparar para afastar de perto
o sobrinho Bebeto de Freitas, ex-presidente do Botafogo.
Manga já havia fugido para a rua, assustado.
Registrou o caso na 10ª Delegacia Distrital, de Botafogo, na manhã seguinte.
Segundo o "Correio da Manhã", o ex-goleiro relatou ao delegado que,
no momento em que foi chamado por Saldanha, acreditava em um pedido de desculpa
pelos comentários feitos no dia da decisão. Contou o susto ao ver Saldanha
sacar a arma. O caso foi entregue ao departamento jurídico do Glorioso da
época. No ano seguinte, ele foi negociado com o Nacional, do Uruguai. Saldanha
dizia ter ajudado na transferência. Manga não guarda mágoas.
- Depois conversamos e nos acertamos, ficou
tudo bem. Ele sabia da denúncia na delegacia, mas não tinha nada. Para um
profissional como eu, que sempre jogava machucado, o importante era o respeito
que tinha pelo meu clube - disse o ex-goleiro.
Hoje com residência no Equador, Manga completa seus 76 anos de idade ao lado da esposa Cecília. Costuma misturar o espanhol com o português. Mas essa história não precisa de tradução. O som da bala basta. E ele parece ainda incomodado. Pouco importa. Haílton Corrêa de Arruda quer ser lembrado pelas grandes defesas. Essas, inclusive, que fizeram o Dia do Goleiro passar a ser no mesmo dia do seu aniversário.
Hoje com residência no Equador, Manga completa seus 76 anos de idade ao lado da esposa Cecília. Costuma misturar o espanhol com o português. Mas essa história não precisa de tradução. O som da bala basta. E ele parece ainda incomodado. Pouco importa. Haílton Corrêa de Arruda quer ser lembrado pelas grandes defesas. Essas, inclusive, que fizeram o Dia do Goleiro passar a ser no mesmo dia do seu aniversário.
Manga foi à delegacia registrar o caso, como conta o jornal
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